Wednesday, July 06, 2011

Cabo Verde clama por editar Arnaldo França 22 Junho 2011

Retratos

Arnaldo França é “o primeiro nome em que se pensa quando se quer garantias de conhecimento, de cientificidade e de seriedade”, escreveu um dia Corsino Fortes, poeta e presidente da Associação de Escritores de Cabo Verde, referindo-se à prosa ensaística do decano das letras e dos ensaistas cabo-verdianos já a caminhar para os seus 86 anos. Mas França é muito mais do que ensaista. A sua obra poética é também de enorme qualidade, pelo que “importa reunir em livro toda essa produção para que possamos estudar mais e melhor a obra do Dr. Arnaldo França”, considera Joaquim Morais, para quem o Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro está “pronta a assumir a parte que lhe cabe nessa empreitada”. Falta apenas o acordo do autor que, humilde e exigente como é do seu timbre, não reconhece importância dos seus escritos.
Cabo Verde clama por editar Arnaldo França
Conta Manuel Brito Semedo numa crónica que publicou na edição de Abril/2011 da revista “Pré-Textos” que um dia, em 2007, cruzou-se com a escritora Fátima Bettencourt e esta questionou-o sobre um determinado tema da literatura cabo-verdiana. Não tendo certeza sobre a informação, Brito Semedo respondeu: “Isto só consultando o Dr. França, mas ele não está…”, ao que a Fátima Bettencourt retrucou: “Mas o Dr. França não pode ausentar-se por muito tempo sem nos avisar!”. Um episódio que não deixa de ser sintomático sobre o prestígio de que goza Arnaldo França entre os intelectuais cabo-verdianos, apesar de no seu currículo constar até hoje apenas uma obra publicada, Notas sobre poesia e ficção cabo-verdianas (1962).
É que a produção dita “avulsa” do poeta, ensaista, pesquisador e pensador, que está publicada em diversas revistas, antologias e colectâneas, é significativa e de qualidade, concorda a comunidade literária cabo-verdiana. Tanto em poesia como em prosa ensaística, ela “perpassa toda a história da literatura cabo-verdiana, na perspectiva de alguém que a conhece ‘por dentro’. É só ver a sua colaboração em revistas e jornais nacionais e estrangeiros, para se aquilatar da grandeza da sua obra”, avalia o presidente do Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro.
Tal como outrora fizeram Eugénio Tavares, Pedro Cardoso, Baltasar Lopes, Félix Monteiro e António Carreira, Arnaldo França (nascido na cidade da Praia, em 1925), “tem vindo a estudar e a pensar a cultura cabo-verdiana em todos os seus aspectos, ampliando o nosso conhecimento sobre a cabo-verdianidade. É uma verdadeira enciclopédia viva sobre o saber cabo-verdiano”, diz Joaquim Morais, cuja opinião é corroborada por Simone Caputo num artigo publicado na Pré-Textos.
Para a professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo, Brasil, os ensaios de Arnaldo França sobre António Aurélio Gonçalves, Januário Leite, Guilherme Dantas, Jorge Barbosa, Luís Loff de Vasconcelos, Arménio Vieira, Teixeira de Sousa, Germano Almeida, só para citar alguns exemplos, “tornam antológica” a sua participação “para a sedimentação do sistema literário cabo-verdiano”.
Arnaldo França é figura incontornável da literatura, com trabalhos que vão da tradução ao ensaio a estudos vários. Assim, já traduziu para a língua cabo-verdiana poetas portugueses como Fernando Pessoa, Luís de Camões, como já passou para a língua portuguesa versos crioulos, nomeadamente de Corsino Fortes. É também autor de estudos únicos como aquele sobre “A mulher na obra de António Aurélio Gonçalves” (apresentado por ocasião do Simpósio Internacional sobre a Geração da Claridade, em 2006, na Praia) ou a biografia de Baltasar Lopes da Silva publicada na colectânea de escritos filológicos e ensaios do escritor e seu antigo professor no Liceu Gil Eanes.
De alto gabarito é também a poesia de Arnaldo França. Uma produção poética de cunho simultaneamente nacional e universalista, segundo especialistas. No volume organizado por Manuel Ferreira “No reino de Caliban: antologia panorâmica da poesia africana de expressão portuguesa”, as suas criações poéticas “para além das ondas que banham o arquipélago, estendem-se à universalidade da poesia”, escreve Simone Caputo. Já Isabel Lobo explica que Arnaldo França encarna a mentalidade cabo-verdiana “com a precisão de que o nacional é também universal, universalismo com uma dimensão que abrange todos os sentimentos, capta os movimentos do mundo e os transforma em poemas que encantam, comovem e consolam”.
Já Vera Duarte destaca que França, que foi editor da emblemática revista Raízes, “tem sabido recuperar das cinzas do passado obras valiosíssimas e, quiçá, referenciais da escrita cabo-verdiana que, de outro modo, ficarariam condenadas, talvez, ao eterno esquecimento e não poderiam ocupar o lugar e papel que lhes cabe na afirmação da nossa identidade cultural”. Entre essas obras estão O Escravo, de José Evaristo d’Almeida, “romance belíssimo que só terá chegado a muitos através de reedição organizada e prefaciada por Arnaldo França”.
Não restam dúvidas que a obra de Arnaldo França é de grande envergadura e merece ser compilada e editada para benefício tanto das actuais como das futuras gerações. Joaquim Morais conta que já tentou por diversas vezes convencer Arnaldo França a dar o seu aval para esta iniciativa que o IBNL quer que tenha o seu selo, pois “o papel de uma Biblioteca Nacional é recriar o panteão dos homens da Cultura, em particular daqueles que se destacam nas artes e nas letras”. Contudo, em nenhuma das suas tentativas Morais foi bem sucedido.
Esta preferência de Arnaldo França por estar “mais nos bastidores do que na ânsia de um protagonismo”, nas palavras de Simone Caputo, entende-a Vera Duarte como fruto da “extrema exigência de perfeição em relação à sua própria escrita, ou mesmo por humildade”. Só recentemente, durante a homenagem que o IBNL lhe fez no Dia Mundial do Livro e do Professor Cabo-Verdiano, Arnaldo França prometeu pensar no convite de Morais. “Creio que ele ficou muito sensibilizado com a homenagem, a que muitos amigos e admiradores fizeram questão de assistir. Talvez seja desta vez que ele vai dizer sim”, comenta um esperançado presidente do Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro. Sim, por favor, clama Cabo Verde.

Teresa Sofia Fortes

Extraído do Jornal A Semana online

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